As Geotecnologias e o Estado

É comum, nos meios geocientíficos, encontrar debates acalorados sobre qual deve ser o real tamanho da intervenção estatal neste segmento da sociedade. No centro destas discussões está a revolução tecnológica, que transforma a cartografia em um complexo projeto computacional, o sensoriamento remoto em uma poderosa ferramenta de processamento de imagens e a ciência da computação em um meio de gerenciamento de banco de dados com um volume de informações inimaginável antes do advento da internet.

A dialética entre desenvolvimento tecnológico e interesse público é uma constante na história das civilizações, sendo o Estado o instrumento mais eficaz para alcançar o objetivo de intervenção nos interesses individuais e coletivos. Para as geociências, as competências da União para organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional estão expostas no artigo 21, inciso XV, da Constituição Federal (CF), que ainda reserva como privativo da União legislar sobre o sistema estatístico, cartográfico e geológico (art. 22, XVIII, CF) e a faculta articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico para reduzir desigualdades regionais (art. 43, CF). Esta é a base para justificar a atuação estatal nas geotecnologias.

Este sistema jurídico encontra enormes desmembramentos na prevenção de catástrofes naturais, urbanização de favelas, planejamento ambiental, de infraestrutura, combate à criminalidade (principalmente as questões tecnológicas e jurídicas no que concerne o uso de GPS como tornozeleira de detentos), desenvolvimento de tecnologias aeroespaciais, dentre outros. É importante notar que, se considerarmos os três momentos anteriores de desenvolvimento cartográfico no Brasil (Período Monárquico, Estado Novo e Regime Militar), é a primeira vez que o país busca desenvolver o sistema cartográfico em regime democrático, fato que pressupõe níveis de interação com a sociedade que não foram anteriormente percebidos.

Há diversas formas de o Estado intervir nas geotecnologias para construir uma política pública setorial. No centro desta iniciativa está a criação do Sistema de Informação Geográfica (SIG) brasileiro por meio da instituição da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE), ambiente que certamente conferirá enormes avanços no que concerne a identificar o interesse público no sistema geocientífico brasileiro. Dentre as necessidades estão a de acompanhar a alta mutabilidade tecnológica; dispor de mecanismos para intercâmbio de dados espaciais de plataformas tecnológicas distintas; criar padrão nacional de metodologia cartográfica; desenvolver ferramenta de GIS de baixo custo; proteger intelectualmente as invenções; universalizar as ferramentas geocientíficas; dentre outros.

Há um cenário de alta mutabilidade tecnológica e social, com uma crescente intervenção estatal na iniciativa privada, sob o argumento central de interesse público. Os geocientistas, nesta realidade, devem produzir a análise espacial com base nas ferramentas cartográficas e estatísticas. Os juristas, por sua vez, precisam conceber um regime legal para adequar esta realidade à sociedade. Ambos acabam por ganhar uma função análoga aos antigos sacerdotes egípcios, de guardiões dos segredos das ciências e de suas aplicações, pois, somente no Brasil, devem desvendar a arte de dirimir interesses entre a União, 26 Estados, o Distrito Federal e 5.564 municípios que, sobrepostos espacialmente e em suas competências, devem coexistir. E sem milagres.

Luiz Antonio Ugeda Sanches
Mestre em Direito e em Geografia pela PUC-SP. Diretor-Executivo do Instituto Geodireito
las@geodireito.com