Terrenos reservados às margens de rios públicos
Este tema é de suma importância, tendo em vista que, apesar do Código das Águas existir há mais de 78 anos, criado pelo Decreto Federal 24.643 de 10 de julho de 1934, poucos profissionais o conhecem integralmente, bem como as suas implicações na elaboração de peças técnicas visando atender a Lei 10.267/2001 com vistas a certificação no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Com o advento da Lei 10.267 e a necessária anuência dos confrontantes, após a certificação pelo Incra do perímetro do imóvel, os cartórios de registros de imóveis são obrigados a solicitar a anuência de todos os confrontantes. No caso de rio púbico, se federal, a anuência deve ser do Serviço de Patrimônio da União e, se estadual, a anuência é do Órgão do estado que responde por esse assunto. No estado de São Paulo, por exemplo, quem emite a anuência é a Procuradoria de Patrimônio Imobiliário (PPI).
A questão envolvendo os rios públicos, que é a definição da existência e da titularidade dos terrenos reservados, cuja divergência doutrinária se estende há várias décadas, conta com poucas manifestações jurisprudenciais, haja vista a pouca repercussão prática que havia diante das precárias descrições imobiliárias que eram aceitas no passado. Hoje, no entanto, com um maior rigor na fiscalização do cumprimento do princípio da especialidade objetiva, e com a vigência da legislação do georreferenciamento, chegou o momento de “fincar” mais esse marco jurídico conceitual.
Pelo Código de Águas, de vigência reconhecida pelos tribunais, as margens dos rios públicos são de propriedade estatal, bens dominicais da União ou do Estado, dependendo a quem pertença o próprio rio.
Portanto, confrontando o imóvel com um rio público, o levantamento técnico de seus vértices deverá respeitar a faixa de propriedade pública, ou seja, estar distante 15 metros do ponto médio das enchentes ordinárias (ou 33 metros da preamar média de 1831, se o rio estiver ao alcance das marés). Entretanto, o caput do artigo 11 do Código de Águas traz uma importante regra:
Art. 11 – São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular.
No Brasil, o único título legítimo que constitui propriedade sobre bem imóvel é o registro público imobiliário, atualmente representado pela matrícula. Assim, se a descrição tabular do imóvel fizer menção ao rio público como confrontante, sem ressalvar a faixa de terreno reservado, esta é de propriedade particular, conforme estabelece o Decreto de 1934.
As margens dos rios navegáveis são, em regra, de domínio público. No entanto, se o particular possui título legítimo de propriedade abrangendo essas áreas, tais prolongamentos das margens não são terrenos reservados, mas sim terras particulares lindeiras ao curso d’água de domínio público.
Em 2004, no Recurso Especial 443.370 que tratava desse assunto, a Ministra do STJ Eliana Calmon, atuando como relatora, destacou que a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo não se baseou no parecer da Capitania dos Portos para concluir pela indenização das terras marginais ao rio Cabuçu de Cima, mas sim no fato de os proprietários possuírem título legítimo, o que afasta a aplicação da Súmula 479 do STF, segundo a qual as margens dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização.
A ministra entendeu que os expropriados, detentores de título legítimo, tinham o direito legal de propriedade, cabendo ao Estado, que expropriou a área por intermédio do Departamento de Águas e Energia do Estado de São Paulo (Daee), arcar com as verbas indenizatórias.
Esse mesmo entendimento já havia prevalecido no RE 10.042/SP, julgado em 14/11/1950, que recebeu a seguinte ementa: “pertencem ao domínio público as margens dos rios públicos, salvo prova de concessão emanada pelo poder público”.
Em outro Recurso Especial (RE 637.726-SP, julgado em 3/3/2005), a 1ª Turma do STJ manteve o mesmo posicionamento jurídico, enfatizando expressamente um importante trecho do acórdão do tribunal paulista:
Destaque-se, ademais, que, ainda que demonstrada a navegabilidade do rio Cabuçu de Cima, a indenização das áreas marginais não poderia ser afastada, porquanto, segundo afirmou o juízo de primeiro grau, os expropriados comprovaram a titularidade do imóvel através da matrícula nº 106.283, proveniente do 15º Cartório de Registro de Imóveis.
Essa recente decisão demonstra claramente que, havendo na matrícula clara menção de que a propriedade imobiliária atinge as margens do rio, não há que se falar em terreno reservado, pois o próprio Código de Águas excetua de seu conceito as faixas lindeiras tituladas em nome do particular.
Ao levantar um imóvel seccionado ou confrontante de um rio público, o agrimensor deverá observar se a descrição tabular exclui ou não essas áreas. A simples menção de o imóvel confrontar com o rio e a simples indicação de o rio estar no interior do imóvel são evidências claras da inexistência dos terrenos reservados.
Entretanto, se tal margem estiver com clara destinação pública, independentemente de desapropriação ou mesmo comunicação oficial, mesmo havendo título de propriedade em favor do particular, todo o espaço abrangido por essa utilização pública passa automaticamente ao patrimônio estatal, da mesma forma que ocorre com as estradas que cortam o imóvel de forma arbitrária.
Isso pode ocorrer no seguinte exemplo: o poder público constrói e mantém um pequeno ancoradouro às margens de um rio piscoso, como forma de fomento à atividade pesqueira da região. Com a destinação pública desse espaço, o proprietário do imóvel ribeirinho, mesmo possuindo título claro em seu favor, perde o domínio dessa área, sobrando-lhe apenas o direito de ajuizar uma ação de desapropriação indireta em face do Estado, para requerer a devida indenização.
Tal situação costuma também ocorrer com as barragens para usinas hidrelétricas, em que existe um decreto expropriatório atingindo todo o solo que esteja situado abaixo de uma determinada cota, às margens do curso d’água e dos afluentes formadores dessa represa.
Nestes casos, independentemente de ter ou não havido indenização, a área abrangida pelo decreto expropriatório é pública e deve ser excluída do levantamento técnico do imóvel privado. Nos casos das represas, em especial, a anuência da empresa concessionária é fundamental para viabilizar a retificação da descrição do imóvel na matrícula.
Outro aspecto importante é a desvantagem de o Estado colocar-se como titular dessas margens estendidas. Enquanto estiverem sobre o domínio do proprietário do imóvel, este é objetivamente responsável pela conservação dessa área que, pela legislação ambiental, está inserida na área de preservação permanente (APP).
A APP possui dimensão variável conforme a largura do rio, mas, como sua faixa mínima é de 30 metros, todos os terrenos reservados estão sob proteção ambiental. Considerando pública essa margem, além de o Estado não ter condições de fiscalizar essas áreas de proteção ambiental, perderá ele o melhor tipo de fiscal, o proprietário rural que, além de deixar de ser responsável pela sua conservação, também perde o poder-dever de fiscalização, uma vez que qualquer atitude que venha a tomar contra eventuais agressores deixará de caracterizar o “desforço imediato” e poderá até tipificar a conduta do “exercício arbitrário das próprias razões”.
Por fim, cumpre esclarecer que, mesmo que o proprietário tome a iniciativa de retificar a descrição tabular de seu imóvel, que resultará na exclusão da área pública irregularmente constituída, ele não perde seu direito de ação em face do Estado, caso esta ainda não esteja prescrita. A nova descrição tabular do imóvel omitiu tal área por força do ordenamento jurídico que impede a inclusão de área pública em área privada, não tendo essa “providência compulsória” o caráter de renúncia aos direitos garantidos pela legislação pátria. Além disso, a antiga descrição tabular existente na matrícula ou transcrição anterior continuará escriturada no registro imobiliário, como uma prova perpétua dotada de fé pública “juris tantum” da existência desse título de propriedade que inclui as áreas invadidas de forma indevida pelo poder público.
Engenheiro Agrimensor – Incra , Especialista em Georreferenciamento de Imóveis Rurais, formado pela FEAP-SP, Professor do Curso de Pós Graduação em Georreferenciamento de Imóveis Rurais – disciplina de Normas e Legislação aplicada ao Georrreferenciamento de Imóveis: Universidade Regional de Blumenau; Fundação Educacional de Fernandópolis; e União Educacional do Norte – Rio Branco. Professor do Curso Legeo- Legsilação e Georreferenciamento da Universidade Santiago & Cintra (www.unisantiagoecintra.com.br). Integrante da equipe técnica que elaborou a Norma de Georreferenciamento de Imóveis Rurais do Incra
robertotadeuteixeira@gmail.com